Kiyoshi Harada
O objetivo deste artigo é o de demonstrar que a decisão do STF visou instituir uma nova política criminal tributária à luz do conceito de justiça extraído do pensamento de seus integrantes, de um lado, e de outro lado procurando minimizar o estoque da dívida ativa tida como incobrável por via de execução fiscal.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2020
- Introdução
Em recente decisão o plenário do STF, por maioria de votos, surpreendeu a comunidade jurídica ao criminalizar a conduta do contribuinte que declara o ICMS devido e deixa de recolhê-lo ao erário, no prazo legal.
A Corte Suprema capitulou essa conduta no inciso II, do art. 2º da lei 8.137/90, conhecido como crime de apropriação indébita do tributo, que assim prescreve:
“II – deixar de recolher, no prazo legal, o valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Muitos artigos foram escritos e certamente outros continuarão sendo escritos na mesma linha técnica, criticando o equívoco na interpretação do texto da lei penal supra transcrito.
Contudo, temos a convicção de que a real motivação para enquadrar a conduta do devedor do ICMS declarado pouco tem a ver com o aspecto técnico-jurídico. A sua causa é bem outra, como veremos mais adiante.
- Não houve erro na interpretação jurídica
O texto do inciso II, do art. 2º da lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, é de lapidar clareza, ao alcance da compreensão de qualquer estudante de direito.
De fato, resulta com solar clareza que o crime capitulado no citado inciso II exige a presença de dois contribuintes: aquele que retém ou desconta o tributo devido e aquele que sofre a retenção ou desconto do tributo devido. É o que acontece, por exemplo, quando o empregador (contribuinte) desconta tanto o imposto de renda, quanto a contribuição previdenciária quando promove o pagamento de salário a seus empregados (contribuintes), mediante a retenção na fonte dos tributos por estes devidos.
Isso só é possível em relação a tributos diretos, sendo absolutamente impossível juridicamente em relação a impostos indiretos, como o ICMS, porque o valor desse imposto está embutido no preço da mercadoria juntamente com outras despesas, como as concernentes a salários dos empregados, alugueis, matérias primas, além da margem de lucro que entram na composição da política de preços. Por isso, nos tributos indiretos o valor do imposto representa um custo, integrando o preço que é uno e indivisível, pertencendo unicamente ao comerciante e a mais ninguém, muito menos ao fisco que não é sócio na exploração da atividade econômica. Somente no regime de tributação por fora, vigorante nos Estados Unidos e no Japão, dentre outros países, o valor do tributo destacado pertence ao fisco. Nesse regime de tributação por fora há nítida separação do preço pertencente ao comerciante e do tributo pertencente ao fisco. Por isso, naqueles países a tributação é transparente e à prova de sonegação. O consumidor percebe de imediato quanto está custando a mercadoria adquirida e quanto está pagando ao fisco por conta dessa aquisição. O tributo não é camuflado como acontece no Brasil. O comerciante que se apropria do tributo que não lhe pertence comete o crime de apropriação indébita.
Aqui o destaque do imposto é para mero efeito de assegurar a não cumulatividade do ICMS. Ao final de cada período de apuração do imposto, o ICMS destacado gera crédito na entrada de mercadoria o qual é confrontado com aquele destacado na saída da mercadoria (débito) no mesmo período. A diferença a maior constitui o imposto a ser recolhido no prazo legal; a diferença a menor constitui o ICMS a ser transferido para o período subsequente. Por isso, se em determinado período de apuração entrou mais mercadoria do que saiu não haverá imposto a ser recolhido. O peço pago pelo consumidor no qual se acha embutido o valor do imposto pertence exclusivamente ao comerciante-vendedor. Impossível a confusão do consumidor que paga o preço da mercadoria adquirida com a figura do contribuinte que paga o imposto apurado periodicamente por meio de operação contábil fiscal, como retro descrito. O consumidor nada deve ao fisco que sequer o conhece, porque não figura no cadastro fiscal. Confundir essas duas realidades distintas é o mesmo que confundir o gás com a tubulação que o transporta.
Não é possível, nem crível que os ínclitos integrantes do STF, todos eles profissionais experientes e dotados de notável saber jurídico não tenham a percepção desses fatos tão elementares, de pleno conhecimento de qualquer operador do direito.
Não há nenhuma possibilidade de que os doutos ministros da Corte Suprema tenham confundido o consumidor com o contribuinte do ICMS e que tenham cometido tão gritante equívoco na interpretação do inciso II, do art. 2º da lei 8.137/90, promovendo uma equiparação manifestamente atípica da conduta do devedor do ICMS declarado. Não passa na cabeça de ninguém que os insignes Ministros da Corte Suprema tenham incorrido em semelhante confusão jurídica!
- A verdadeira motivação do STF para criminalizar a conduta do devedor do ICMS declarado
Ante as razões aduzidas no item anterior dúvida não há que os ilustres componentes do STF, substituindo-se na ação do Legislativo e do Executivo, traçaram uma nova política criminal tributária. Assim o fizeram de boa-fé com a louvável preocupação voltada para a tentativa de resolver a crucial questão do estoque da dívida ativa que vem se acumulando, alcançando a cifra de 3.2 trilhões, com a expectativa de crescimento anual de 15%, tornando absolutamente inviável a sua cobrança judicial, tendo em vista que cada execução fiscal leva em média 14 anos para sua finalização.
Outro aspecto que seguramente levou a Corte Suprema a criminalizar a conduta do devedor de imposto declarado, protegido pela Carta Magna e pelo pacto de São José da Costa Rica que proíbem a prisão por dívida, foi, sem dúvida alguma, a questão de justiça tendo em vista que, enquanto muitos se esforçam e se sacrificam para pagar os pesados encargos tributários, outros protelam ao máximo esse pagamento valendo-se de vias processuais dentro do quadro de um Judiciário tomado pela morosidade crescente, na contramão da EC 45/04 que instituiu a utópica figura da duração razoável do processo. A celeridade processual é uma questão de vontade política que independe de legislação, ordinária ou constitucional.
Só que a substituição do critério de justiça objetivamente fixado pelo legislador, pelo critério subjetivo de justiça estabelecido pelos julgadores, invariavelmente, descamba para uma injustiça maior!
A justiça é um valor que o legislador já levou em conta por ocasião da elaboração das leis. Como representantes legítimos do povo, os legisladores ao elaborarem as leis levam em conta todos os aspectos econômicos, políticos, sociais e jurídicos procurando conciliar os interesses em conflitos, buscando a feitura de normas justas para todos, governantes e governados, dentro dos limites do possível e da razoabilidade. A eventual atualização legislativa em face do dinamismo da realidade social não é tarefa cabente ao Poder Judiciário que, quando muito, pode apenas promover a leitura atualizada dos textos normativos, porém, sem inovar o seu conteúdo material.
O legislador tem a consciência da injusta carga tributária imposta aos contribuintes em geral, levando parte do empresariado à situação de insolvência, comprometendo o crescimento econômico do País. Daí a tomada de medidas legislativas aparentemente contraditórias: instituição de diferentes sanções políticas a devedores de tributos, de um lado, e de outro lado, oferecimento de regimes de parcelamentos de débitos tributários que vêm sendo aprovados periodicamente. Isso sem falar na instituição da recuperação judicial de empresas em dificuldades financeiras momentâneas (lei 11.101/05).
- A inócua inovação da ordem jurídica
Os ínclitos ministros do STF ao ignorarem a ordem legal, buscando a realização da justiça a sua maneira e a minimização do crescente estoque da dívida ativa, ainda que com os melhores propósitos, em nada contribuíram para resolver o grave problema da inadimplência que, em última análise, resulta de um sistema tributário injusto que tributa acima da capacidade contributiva da maior parte dos contribuintes em geral, para aliviar a carga tributária de uma minoria de contribuintes favorecidos por uma gama de fantásticos incentivos fiscais de toda sorte, alguns deles ostentivamente dirigidos, porque frutos de encomendas políticas, mediante uso de expedientes que descabem, às vezes, para a prática de delitos . Por conta desses incentivos, perde-se a arrecadação de cerca de 270 bilhões anuais, estupidamente imputados a contribuintes não contemplados com os benefícios fiscais.
De outra banda, os insignes ministros da Corte Suprema não se aperceberam da perversa política de ir impondo uma carga tributária cada vez maior1 aos que estão conseguindo pagar com sacrifícios imensos, enquanto nada vem sendo feito para diminuir o estoque da dívida ativa por meio de compensação tributária, por exemplo. O poder público que o grande devedor de precatórios judiciais, de títulos públicos vencidos e de empréstimos compulsórios não restituídos no prazo legal, ao invés de oferecer compensação tributária, vai simplesmente promovendo a inscrição dos inadimplentes no Cadin e na Dívida Ativa, sabendo de antemão quanto à inviabilidade de sua cobrança judicial. Nenhum esforço para melhor aparelhar as Procuradorias Fiscais ou de compor a dívida está sendo feito! A recente medida provisória de 899/19, que aprovou a transação tributária, nada tem a ver com o instituto da transação que deve necessariamente envolver a extinção do crédito tributário (principal e acessórios) mediante concessões recíprocas, que requer muito labor, trabalho de dedicação de servidores públicos cada vez mais ociosos. Não é nada disso que está nessa pseuda transação tributária de que cuida a MP 899/19.
- A solução não está na criminalização de conduta atípica
A questão de devedores de impostos declarados só pode ser equacionada dentro de uma visão global do problema que o Judiciário não tem, porque não é um Poder vocacionado para conduzir os destinos da País mediante formulação de políticas públicas adequadas. E também não cabe aos integrantes do Poder Judiciário tentar corrigir eventuais políticas públicas, que no seu entender estejam equivocadas, por lhes falecer a legitimidade do voto popular.
A visão global dos problemas somente os membros do Executivo, que aplicam as leis diariamente, e os membros do Legislativo, que elaboram as normas legais, podem ter. Quando um Poder age além de suas atribuições próprias, qualquer que sejam os seus bons propósitos, o resultado só poderá ser negativo, quando não catastrófico.
Para tentar justificar o injustificável um dos ilustres ministros, logo entusiasticamente seguido pelos demais, enfatizou que o “crime só se caracteriza quando houver dolo, intenção de não pagar o imposto declarado”.
Ora, como é óbvio, essa afirmativa encerra uma contradição lógica inafastável. O contribuinte que apura e informa ao fisco o exato montante do imposto devido certamente não pode estar agindo com dolo. Quem age com dolo, sonega e não declara. E o ilustre ministro sabe disso!
Ao criminalizar a conduta do mero devedor de imposto contra expresso preceito constitucional (art. 5º, LXVII da CF) e expressa proibição contida na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7º), ratificada pelo Brasil em 25/9/92, o STF está forçando uma parcela ponderável de devedores a migrarem para o regime de sonegação parcial ou total de tributos.
A decisão plenária da Corte Suprema só surtirá efeito preventivo em relação a uma parcela de contribuintes em condições de pagar em dia os tributos, mediante sacrifícios de seu capital de giro, implicando dispensa de empregados seguida de redução parcial de sua produtividade, a refletir no nível de crescimento do PIB e consequente redução da receita tributária a induzir o governo na nova elevação de tributos em geral2.
Contudo, a grande parcela de contribuintes que estão operando com o mínimo de capital de giro indispensável, sem nenhuma capacidade contributiva, por uma questão se sobrevivência, terão que migrar para o regime de sonegação parcial ou total para poderem continuar operando no mercado para sustento próprio e de sua família. Se isso acontecer, o fisco terá que decuplicar o quadro de agentes fiscais e proceder a fiscalização presencial de cada empresa, buscando os valores sonegados, culminando com a lavratura de milhares de autos de infração que, uma vez impugnados, levarão no mínimo cinco anos de discussão na esfera administrativa e outros tantos na esfera judicial, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da CF).
O imposto declarado e não pagão no prazo legal poderá seguir diretamente para a inscrição na dívida ativa, sem necessidade de percorrer a cansativa e morosa via da fiscalização tributária. E mais, tributo declarado pelo contribuinte não poderá ser contestado em juízo. Não é prudente, nem aconselhável, pois, provocar a migração de contribuintes inadimplentes para contribuintes sonegadores.
- Considerações finais
Conclui-se, portanto, que a criminalização da conduta atípica não irá resolver o problema da dívida ativa que vai se acumulando em uma velocidade espantosa. Pelo contrário, irá agravar a situação vigorante causando surgimento de inúmeros outros problemas antes inexistentes.
A solução do problema está muito longe do simples gesto de encarcerar os devedores, uma visão superficial, parcial e equivocada do problema que tem raízes bem mais profundas.
Outrossim, a nova política criminal tributária, para a sua efetiva implantação não pode prescindir da construção de novos presídios, porque os atualmente existentes já estão com lotações excessivas. Donde sairão os recursos para a construção de estabelecimentos prisionais que irão envolver, também, imensas despesas de pessoal? Será que o STF pensou nisso? Será que seus integrantes concordariam em direcionar parte das verbas do orçamento do STF para viabilizar a nova política criminal tributária?
Somente uma ação conjugada do Executivo e do Legislativo, com a tomada de medidas que possibilitem devolver ao setor produtivo parte do oxigênio retirado em excesso, poderá superar esse impasse vigorante.
Entretanto, essa ação conjunta é de difícil execução, porque para diminuir a fantástica carga tributária deverá implantar uma política de justiça social que minimize o sofrimento dos excluídos e retirar os privilégios dos detentores do poder político que diariamente estão incorporando, injusta e imoralmente, benefícios de toda sorte em causa própria que custam à nação uma montanha de dinheiro. Nos mais enfáticos defensores da política de inclusão social é possível identificar agentes políticos que se guiam pelo verbo “ter”. Os verbos “dar”, “doar” e “repartir” para eles não existem! Fazem vista grossa a milhões de pessoas que estão vivendo abaixo da linha da miséria. Aliás, em sua visão egoística isso seria um mal necessário, como a escravidão o foi no passado! Os que estão no andar de cima não se dignam em olhar para a imensa maioria da população que está no andar de baixo. Limitam-se a empinar a cabeça para cima e bradar aos céus pela justiça social, igualdade, fraternidade, solidariedade etc. São os profissionais que exercitam com inigualável maestria a arte do cinismo que, no fundo, revela falta de censo ético.
Dentro desse quadro, tomado pela cultura do individualismo arraigado e do egoísmo sem limite, não creio que haja espaço para a atuação do Judiciário em busca de sua pretendida justiça fiscal.
O Poder Judiciário deve limitar-se à aplicação das leis em vigor conformadas com os textos constitucionais. Não lhe cabe o papel de moralizador dos costumes da sociedade, nem o de fazer justiça segundo seus critérios próprios. O Judiciário não está acima dos demais Poderes da República, nem acima da lei. É um Poder independente e harmônico tanto quanto o Executivo e o Legislativo. Nenhum Poder é melhor que o outro.
A política criminal tributária que deve observar e fazer cumprir é aquela positivada pelo Órgão Legislativo, quer queiram ou não os ilustres integrantes do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.
Enfim, falta no nosso País injetar uma forte dose de ética, um valor mergulhado em crise profunda. Sem ética é impossível cogitar-se em uma sociedade justa e democrática. É preciso ética no ato de legislar, no ato de executar e no ato de julgar para construir e preservar uma sociedade justa para todos e duradoura.
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1 A carga tributária que no início da década de 80 era de 22% do PIB foi crescendo para 23%, 25%, 27%, 29%, 31%, 34% e hoje mais de 35% do PIB, enquanto houve uma sensível pioria na prestação de serviços públicos essenciais ao longo desse período. Algo deve estar errado!
2 O ativismo judicial, ao tentar corrigir uma distorção, acaba criando outros inúmeros problemas de natureza social, política e econômica.
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*Kiyoshi Harada é sócio do escritório Harada Advogados Associados.
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