quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Interpretação dos negócios jurídicos e a liberdade econômica



Sílvio de Salvo Venosa e Luiza Wander Ruas
Espera-se um novo período de maior liberdade nas negociações, manutenção dos contratos e estabilidade das relações para que os empresários e contratantes em geral se sintam mais confortáveis para realizar negócios no Brasil.

A tão discutida MP 881 foi transformada na lei 13.874 no final de setembro deste ano, em meio a muita celeuma e expectativa de juristas e empresários pela instituição da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e vigência das previsões de desburocratização ali contidas, especialmente relevantes para os pequenos empreendedores.
O que se depreende da leitura integral desses novos artigos é que o Executivo, agora com a chancela do Legislativo, almeja superar a persistente ineficiência estatal e estagnação para dar abertura para um novo momento, de maior liberdade, com investimentos, geração de renda, livre mercado e, enfim, desenvolvimento.
Para esse novo momento de dinamismo econômico, inevitavelmente ajustes no ordenamento também se fazem necessários, já que o Direito, por vezes, pode impedir ou retardar que negócios se realizem da forma almejada. Esses ajustes demonstram, como não se duvida, como o Direito, a Economia e o desenvolvimento estão profundamente conectados.
Passando à análise jurídica, dentre os artigos do Código Civil alterados, analisaremos apenas os que são relevantes para os negócios jurídicos firmados entre particulares, especialmente os referentes à sua interpretação.
Pontua-se que da análise comparativa entre a redação atual desses artigos e a redação presente na versão inicial da MP, nota-se que diversos ajustes foram feitos e alguns pontos contraditórios e até mal redigidos não prosseguiram.
Não se abordará neste texto as demais regras de interpretação do Direito Civil e da área Consumerista, já que tais regras estão profundamente abordadas em nossa doutrina. Busca-se aqui discorrer tão somente sobre as positivações da lei da liberdade econômica.
Considerando que interpretar é aplicar o Direito, o ponto central dessa recente norma é a interpretação dos contratos, ou seja, a exegese do que foi redigido ou declarado.
O contrato, bem como qualquer instrumento, deve ser claro para que uma generalidade de público, um segmento social, o famoso auditório tratado por Chaim Perelman, consiga compreender e absorver a integralidade de seus termos. Nesse sentido, como dito pelo ilustre Caio Mario da Silva Pereira: interpretar é uma reconstrução da vontade das partes no momento da formação do contrato1.
Contudo, como nem sempre as palavras conseguem atingir certeiramente o que as partes contratantes almejavam na época na elaboração do documento, a interpretação e integração dos contratos passam a ser enfoque. Na verdade, toda lei e todo contrato exigem interpretação, mais ou menos ampla. É falacioso o brocardo in claris cessat interpretatio.
Com os novos itens trazidos pela lei 13.874 adiciona-se ao antigo artigo 113 do Código Civil parágrafos e incisos, com novas regras interpretativas para um negócio jurídico. Aliás, diga-se, todas essas regras introduzidas são de sobejo conhecidas na doutrina e utilizadas nos tribunais. Ademais, não é conveniente que o texto legal esteja pleno de regras, a atulhar o raciocínio do julgador, pois esse trabalho é doutrinário e jurisprudencial. No entanto, o novel legislador parece estar longe dos ensinamentos de Pothier, Demoge e tantos outros autores, nacionais e estrangeiros, do passado e do presente.
Passemos, então à análise de cada desses novos dispositivos.
Lembremos o texto do caput do art. 113 do Código Civil:
“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração”.
Recorde-se ainda o texto do art. 112, que estatui que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que o sentido literal da linguagem”.
Assim, tendo esses dois textos em mente, analisemos o que a novel lei introduziu.
Comportamento
“Artigo 113, §1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
 I. for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio.”
Neste inciso o legislador enfoca para a prática contratual. A interpretação deve ser direcionada ao rumo do que os contratantes efetivamente encetaram no cumprimento daquilo que foi acordado no negócio jurídico. O comportamento das partes depois da conclusão do contrato denota um rumo, uma interpretação do negócio dada pelos próprios contratantes, na realidade os intérpretes primeiros deste negócio. No caso de conflito desses comportamentos, poderá surgir a necessidade do intérprete final, um julgador, juiz ou árbitro.
Imagine-se um contrato de locação de imóvel, quando o locatário efetua o pagamento mensal do aluguel sempre a destempo, e, não lhe sendo aplicado qualquer penalidade e sem que tal fato seja contestado pelo locador ou observado na quitação. Então, em um momento posterior não há que o locador intente cobrar qualquer valor de multa e juros por esses dias de atraso no pagamento, tendo em vista que na execução do contrato de locação nunca cobrou/reclamou por tal inadimplemento. Trata-se de análise típica de comportamento contratual, sufragada pelos tribunais.
Usos, costumes e práticas de mercado do tipo de negócio
“Artigo 113, §1º, II. corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio.”
Além dos usos do local da celebração, que já estavam previstos no caput do artigo 113 referente aos negócios jurídicos, a novidade passa a ser a menção dos usos, costumes e práticas do mercado para o respectivo tipo de negócio na interpre-tação. Esse aspecto já era sobejamente conhecido da doutrina e da jurisprudência. Posição primária do legislador, desacostumado certamente com os procedimentos processuais e com o direito doutrinário. Esses aspectos já fazem parte da cultura comercial local e internacional.
Desses conceitos, de forma muito resumida, se tem: “usos” é algo que é feito pelo próprio mercado de forma rotineira; “costume” é a prática reiterada e que as partes entendem como necessária para o negócio; e “práticas de mercado” são os atos comuns no desenrolar de cada negócio.
Independentemente de tentar separar tais conceitos, os usos, costumes e práticas do mercado são termos complementares para referir à prática civil e empresarial de um negócio, o que é subentendido mesmo na ausência desse texto legal superfetado.
Invocando nesta Pothier, importante doutrinador francês que no século XVIII listou mais de uma dezena de regras para interpretação das convenções, já considerava essa cultura comercial que está sendo positivada em nossa lei no presente, vejamos: quando a cláusula não for clara, deve seguir o mais aplicável à natureza do contrato2. Pois é, a lei nova traz aqui uma falsa modernidade, porque tradicional há vários séculos.
Vejamos um exemplo: em um contrato de fornecimento de uma quantidade fixa de mercadorias mensalmente, caso as partes descrevam apenas um valor no instrumento, sem especificar que será pago aquele mesmo valor mensalmente, pela prática deste tipo de negócio, entende-se que aquele montante será pago todos os meses.  Ademais, se fosse aquele valor a ser pago pelo contratante uma única vez durante todo o período de vigência contratual seria irrisório para a contratação, não fazendo o menor sentido essa interpretação restritiva.
Notem, ainda, que em cada região o mesmo negócio pode ter práticas mercantis diferentes, e isso também deve ser observado. Devido a essa prática, o “mercado segue uma ordem e tem certa previsibilidade”3 e será o que regerá no caso de uma lacuna/contradição de uma previsão contratual.
Impõe-se, ainda mais, que os advogados contratualistas compreendam o negócio e até o posicionamento físico, ético e social de seus clientes para prever cláusulas específicas que atendam o seu negócio.
Boa-fé
“Artigo 113, §1º, III. corresponder à boa-fé”
A boa-fé é bem difundida no Código Civil de 2002, que agora também vem reiterada em certos aspectos na lei 13.874 (como também no artigo 3º, V). A ideia é realçar que a interpretação corresponda à boa-fé, desconsiderando ou punindo toda ação que for contrária a esse princípio.
Como regra, a boa-fé prevista na legislação civilista é a objetiva, em contra-partida à boa-fé subjetiva, que é a vontade em si, o que o agente, em seu íntimo, entende ou vislumbra. A boa-fé objetiva nada tem a ver com essa subjetividade, e sim com a conduta social externamente percebida, eticamente aceita antes, durante e depois do contrato. Trata-se do comportamento aceito como padrão, standard, em cada caso concreto.
Por isso, a boa-fé objetiva dá mais segurança ao sistema, porque não há que se adentrar em pensamentos íntimos que são impossíveis de se acompanhar, quando não imprevisíveis.
Interpretação mais benéfica
“Artigo 113, §1º, IV. for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável.”
Essa dicção consagra o brocardo ambiguitas contra stipulatorem est, ou seja, fato já bem conhecido do Direito. Chamamos a atenção para parte final deste inciso e os dizeres “se identificável”. Tal destaque é um ponto inovador, pois para algumas negociações pode ser difícil ou até impossível estabelecer quem inseriu o vocábulo ou estipulou a redação final que gerou a contradição.
Nas discussões das minutas contratuais, em especial de contratos complexos, as partes contratantes realizam diversos ajustes, inclusões e exclusões nas minutas, há marchas e contramarchas e a identificação da autoria de um ponto específico é atividade complexa.
De qualquer forma, independentemente do negócio jurídico, identificando-se a parte que redigiu a previsão que não é clara, não pode esta ser beneficiada de sua torpeza.
Razoabilidade das negociações 
“Artigo 113, §1º, IV. corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.”
Essa disposição é prolixa. Desde os ensinamentos de Pothier que se tem essa noção de interpretação, a de que é preciso voltar para intenção comum das partes e não somente às palavras em si4. Uma cláusula nunca deve ser interpretada isoladamente, mas sim no contexto do instrumento negocial, o conjunto do texto e do contexto é que vai permitir ao exegeta a real compreensão do que foi pretendido pelas partes. O mesmo vale em uma operação com um conjunto de contratos, ou contratos interligados, em que todos os instrumentos devem ser analisados conjuntamente.
Sobre a racionalidade econômica, como leciona Paula Forgioni, trata-se de um termo da economia “relacionada não apenas ao objetivo de lucro, mas à eficiência, conforme os escopos pessoais a que cada um se propõe”5, acarretando maior proveito e lucro. Essa racionalidade econômica para o “standard do homem “ativo e probo” nada mais é senão a assunção de uma racionalidade própria dos empresários [socialmente típica] depurada pelo direito [regras cogentes] como um padrão interpretativo.”6
Diante desse direcionamento da interpretação, verificamos que os considerandos do contrato devem ser bem redigidos, na forma mais clara possível e aprofundada, para que o contexto da celebração seja açambarcado integralmente, uma vez que os destinatários do contrato não serão certamente os mesmos agentes que o redigiram. Esse ponto é de se recomendar em qualquer contratação e não apenas para os contratos mais complexos.
Regras de interpretação
“Artigo 113, §2º. As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
Por essa norma, as partes contratantes podem pactuar suas próprias regras e limites de interpretação, estabelecendo parâmetros, além dos legais. Interpretar é aplicar o Direito buscando o significado do texto negocial e dar aplicabilidade ao previsto no instrumento.
A integração não se confunde com a interpretação. Integração é a complementação de uma previsão, um raciocínio mais amplo do intérprete; é o preenchimento de lacunas com elementos externos ao contrato.
As partes contratantes podem prever qual será a solução que seguirão diante de um fato novo quando houver lacunas nas cláusulas do contrato, ou estabelecer ao menos um procedimento diante desses fatos. Para tal devem sempre recorrer a juristas técnicos, versados na arte de contratar.
Note que essas previsões não são frequentes no cenário e nas negociações brasileiras.
Função social 
“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”
Adentrando ao capítulo das disposições gerais dos contratos em geral, destacamos, agora, a nova redação do artigo 421 caput, em que alguns vocábulos foram alterados, mas que mantém a previsão de que a liberdade contratual está limitada pela função social do contrato.
Essa função social deve estar em pauta sempre que as previsões contratuais atinjam interesses externos, interesses sociais além dos contratantes, como lecionado por Calixto Salomão. Esclareça-se que não se fala em aplicação da função social às partes contratantes em si, caso isso ocorresse levaria a tentativas assistemáticas e difusas de reequilíbrio contratual, que já estão atribuídas pelo princípio da boa-fé e pela cláusula rebus sic stantibus.7
O parágrafo único, ora introduzido, traz, como reiteradamente na lei 13.874, o princípio da intervenção mínima do Estado, devendo a revisão contratual estatal ou arbitral ser uma forma excepcional.
Trata-se de norma programática que para ser efetivada depende do próprio Estado que ora e vez interfere nas contratações privadas. De qualquer forma, é um dispositivo esperançoso e que se coaduna com os demais da liberdade econômica, inclusive a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre as atividades econômicas.
Entendemos que por meio desse dispositivo se permitirá a redução das discussões judiciais, especialmente sobre interpretação contratual, na expectativa de que seja preservado o que foi acordado pelas partes nos contratos. Oxalá estejamos errados, mas todas as tentativas estatais nesse sentido, na História da República, se frustraram.
Simetria das partes e orientadores da interpretação
“Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simé-tricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”
Nos contratos interempresariais as partes passam a ser presumidas com simetria e paritárias, ou seja, as partes contratantes têm a mesma capacidade de analisar o texto contratual, compreender e aceitar os riscos, sendo a negociação equitativa (tal fato também previsto no artigo 3º, VIII da lei 13.874). Todos nós que atuamos na elaboração de contratos sabemos que essa paridade é apenas um rumo e raramente é real.
Tal presunção é, como se percebe, relativa, podendo ser afastada mediante elementos concretos e probatórios. Ademais, tal paridade deve ser verificada sob dois vieses: econômico e social, pois, por mais que uma das partes esteja suportada do ponto de vista econômico, pode não ter o subsídio social, técnico ou intelectual para que se configure uma efetiva paridade e simetria.
Além disso, na relação contratual não é possível afirmar categoricamente sobre a paridade. É comum, até em contratações de grande vulto, que uma das partes  seja mais “frágil” do ponto de vista negocial, com menos poder de barganha, pois necessita da respectiva contratação, aceitando termos que lhe são negativos.
Como reiteradamente expusemos, neste artigo também é sugerido às partes contratantes que estabeleçam, de forma clara e de acordo com a legislação, como será a interpretação das cláusulas contratuais. Podem também estabelecer parâmetros para revisão do contratado e até sobre as modalidades de resolução. Note que essa reiteração expõe a fragilidade dos muitos contratos na realidade brasileira, em que esses preceitos mínimos, como as formas de resolução, estão ausentes de previsão nos instrumentos, forçando contratantes a recorrerem ao Judiciário ou à arbitragem para solucionar qualquer mínimo conflito.
Ocorre, ademais, a positivação sobre a alocação de riscos, previsão já tão comum e inserida frequentemente nos contratos. Tal posicionamento é o que permite a efetivação de diversos negócios, tendo em vista que a alocação de seus riscos, de forma equitativa e ponderada, permite às partes a inserção de certos valores e condições empresariais específicas.
No último inciso do artigo 421-A, novamente o texto ressalta a excepcionalidade da intervenção estatal, incluindo-se uma limitação dessa intervenção, limitada apenas à cláusula que necessita da interpretação de um terceiro para melhor solucionar o conflito instaurado entre os contratantes. Norma de programa, como dissemos, de cunho mais político do que jurídico.
Pode-se afirmar que as doutrinas já abordavam praticamente todas as recomendações que agora estão positivadas no Código Civil e na lei de liberdade econômica, para açular ainda mais os espíritos dos já exauridos magistrados. De qualquer forma, houve essa preocupação do legislador, pois a interpretação dos instrumentos negociais sempre é complexa para as relações empresariais.
A realidade é que estamos cercados de expressões vagas em leis e documentos particulares que dão ao juiz ou ao árbitro abertura para interpretação por demais elásticas, desprovidas de um exame mais acurado da história e dos princípios legais.
Destarte, o intuito das novas normas trazidas pela lei 13.874 é de que o sentido da interpretação é direcionado às partes, e, posteriormente, como sempre, ao juiz ou árbitro, intérpretes derradeiros e conclusivos. Cabe, pois, ao intérprete exa-minar os elementos econômicos, sociais e gramaticais de cada manifestação.
Com o advento da positivação dos preceitos examinados, o que se recomenda é que os contratos passem a conter considerandos mais explicativos, cláusulas sobre a interpretação, integração e alocação de riscos, enquanto para os documentos já vigentes nasce uma grande oportunidade para ajustes quanto a esta nova legislação.
Por fim, conclui-se que a lei 13.874 é mais uma norma plena de boas intenções. Na realidade, este país está farto de boas intenções e péssimas ações. Espera-se um novo período de maior liberdade nas negociações, manutenção dos contratos e estabilidade das relações para que os empresários e contratantes em geral se sintam mais confortáveis para realizar negócios no Brasil. Contudo, a efetiva aplicação dos direitos de liberdade econômica só terá uma resposta com o decorrer de certo tempo. Com a palavra dos interessados e certamente dos julgadores desta terra. Aguardemos a resposta da sociedade e dos tribunais.
Fontes: Migalhas

Há 90 anos, brasileiro previu o surgimento da internet



Professor catedrático da escola politécnica do RJ, Ferdinando Labouriau assinou artigo em 1928 com previsões para o ano 2000.
“Firme como o Pão de Assucar – Sul América, a maior Cia de Seguros de Vida da América do Sul.”
Com a foto do famoso morro carioca, tendo em cima a casinhola que atendia o incipiente bondinho inaugurado quinze anos antes, a propaganda constava na primeiríssima edição da revista O Cruzeiro, no dia 10 de novembro de 1928.
Algumas páginas adiante vinha um artigo assinado por F. Labouriau, com “Uma visão do anno 2000”.
Seu autor, Ferdinando Labouriau, era, então, uma figura conhecida nacionalmente. Engenheiro de brilhantismo inigualável.
Labouriau se propôs no texto a fazer uma previsão de como seria o ano 2000. A missão, que pode parecer ingrata para alguns, foi certeira para ele.
Engenheiro apaixonado, ele focou sua análise no aproveitamento das forças hidráulicas, prevendo a importância das hidroelétricas.
Estimando a população brasileira com 200 milhões de pessoas (atingimos essa marca em 2013, e na época do artigo tínhamos pouco mais de 30 milhões de habitantes), Labouriau prevê que no ano 2000 a luta do homem para o progresso passaria a ser travada especialmente nos laboratórios de pesquisa. 
O engenheiro afirmava que em 2000 a vida iria mudar completamente.
“Melhor? Pior? – É difícil sabê-lo. Mas, seguramente, é diferente.”
E explica que:
“É a era da eletricidade.”
E eis que surge a mais notável das previsões. Vejamos com atenção como ele se transporta para o ano 2000 e conta, no distante ano de 1928, como será o próximo século:
As viagens e os próprios passeios diminuíram muito, desde que, sem sair de casa, pode-se ver o que há em qualquer parte da Terra: a televisão, juntada à telefonia, modificou radicalmente os hábitos.
Não há necessidade de sair para fazer compras: vê-se, escolhe-se, encomenda-se tudo pelo telefone-televisor automático.
Não há mais necessidade de viajar, para ver terras longínquas: é só ligar o receptor, e visita-se, comodamente, qualquer museu, ou qualquer país.
A finalizar seu premonitório artigo*, no qual estão desenhadas as origens dos nossos hoje tão comuns celulares com internet, Ferdinando Labouriau se pergunta se é um “sonho”?
Ele mesmo responde que “sim”, e completa:
“Mas o sonho de hoje poderá ser, amanhã, realidade.”
  • Inacreditável
A previsão de Labouriau é absolutamente fantástica. E se não pelos motivos óbvios, ela é inacreditável pelo fato de que a televisão mal tinha sido inventada em 1928.
Com efeito, o primeiro sistema de televisor analógico foi demonstrado por John Logie Baird em 26 de janeiro de 1926.
E foi só em 1928, ano da publicação do artigo, que imagens em movimento foram transmitidas de um lugar a outro. Ou seja, supor a então onírica junção da telefonia (que mal e mal existia no Brasil) com um aparelho que acabava de ser inventado n’outro canto do mundo, como o televisor, era algo inimaginável.
Impensável para nós, mas não talvez para um engenheiro como Ferdinando Labouriau, cuja existência, desde os primeiros anos, indicava a genialidade.
Mas então, pergunta o leitor, por que nunca ouvi falar dele?
E a resposta vem com a notícia de uma tragédia.
  • Acidente trágico
Vinte e três dias, repita-se, apenas vinte e três dias depois de ver publicado o artigo na revista O Cruzeiro, Fernando Labouriau, com apenas 35 anos de idade, tem seus sonhos soçobrados num acidente aéreo no Rio de Janeiro.    
O desastre do hidroavião “Santos Dumont” comoveu os brasileiros.
Era 3 de dezembro de 1928.
Neste dia, o navio que trazia o inventor Santos Dumont iria atracar no Rio de Janeiro.
Para saudá-lo, organizou-se um grande evento. Duas aeronaves iriam sobrevoar o navio dando boas-vindas ao grande brasileiro que morava na França.
A embarcação que o trazia era o “Cap Arcona”, considerado um dos mais belos e luxuosos navios da época, bem como o quarto maior da potente marinha mercante alemã. A título de curiosidade, o transporte pertencia à empresa Hamburg Süd. Em 1940, foi incorporado pela Marinha Alemã e utilizado no Mar Báltico, como um alojamento. Em 1945, passou para o comando da SS e, finalmente, neste mesmo ano, é bombardeado pela força área inglesa. Naquele dia, o navio, no entanto, estava cheio de prisioneiros que haviam sobrevivido aos campos de concentração. O episódio se tornou um dos maiores equívocos na já horrenda guerra. E a história desta tragédia está representada no Museu Cap Arcona, em Neustadt in Holstein.
Pois bem, Santos Dumont vinha na moderna embarcação. As duas aeronaves, ambas do modelo “Dornier Do J”, uma batizada com o nome “Guanabara” e a outra com o próprio nome do inventor, “Santos Dumont”, iriam sobrevoá-la.
Os hidroaviões decolaram da baía de Guanabara.
O erro de um dos pilotos, no entanto, colocou as aeronaves em rota de colisão, obrigando a que efetuassem manobras evasivas.
O hidroavião “Guanabara” escapou ileso, mas justamente, por ironia do destino, a aeronave batizada de “Santos Dumont” fez uma manobra que lhe custaria a perda de sustentação, causando a queda do aparelho diante dos olhos incrédulos dos tripulantes e passageiros do navio, incluindo aí o aviador Santos Dumont.
Todos os 9 passageiros e 5 tripulantes morreram. Entre eles, personalidades importantes na época, como o médico Amaury de Medeiros, o matemático Manuel Amoroso Costa, e o nosso genial engenheiro Ferdinando Labouriau.
Após o acidente, o inventor Santos Dumont mandou suspender todas as festividades e encomendou flores a todos os velórios. Teria dito ainda: “Quantas vidas sacrificadas por minha modesta pessoa!"
Santos Dumont voltou para França. Sua depressão se agravaria ainda mais, dominando-o poucos anos depois.
O acidente, como se disse, comoveu o país. Um incontável número de pessoas compareceu ao enterro de Ferdinando Labouriau, que tinha sido eleito no mês anterior intendente ao Conselho Municipal do Distrito Federal. 

  • 35 anos de vida
tBatizado como Ferdinando Labouriau Filho, o engenheiro nasceu em Niterói/RJ, no dia 2 de março de 1893. Era filho de Ferdinand Eugene Labouriau e Pauline Josephine Isnard Labouriau. Neto de Paul Henrique Labouriau, famoso relojoeiro que, junto com seu sócio, Gondolo, trouxe ao Brasil os famosos relógios Patek Philippe, no conhecido comércio que possuíam da rua da Quitanda.
Ferdinando fez seus estudos ginasiais no colégio S. José, indo depois para Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Em 1913, é escolhido para viajar com mestres e outros acadêmicos aos EUA no Congresso Internacional de Ithaca, NY. 
Forma-se em 1915, tendo sido orador da turma. Nesta faculdade, foi professor substituto da seção de Mineralogia e Metalurgia e, depois, por concurso, passou a ocupar a cátedra de Metalurgia.
Casou-se em fevereiro de 1919, em Petrópolis, com Judith Soares de Gouveia.
Em 1924, é acusado de participar do malfadado movimento revolucionário daquele ano.
Em 5 de julho de 1924, havia irrompido em São Paulo a segunda revolta do ciclo tenentista da década de 1920. Comandados por Isidoro Dias Lopes, os insurretos ocuparam a capital paulista por três semanas.
No RJ, foi montando um esquema para apoiar os paulistas. Protógenes Guimarães deveria assumir o comando do couraçado São Paulo e dar uma salva de artilharia para acionar o levante em diferentes pontos do Distrito Federal. Entretanto, a polícia descobriu a conspiração e prendeu todos.
Nosso engenheiro Ferdinando Labouriau foi acusado de guardar dinamite no fundo de casa, quando se sabia que era a própria tenebrosa polícia fontouresca quem plantava as bombas nos quintais dos adversários. De fato, a chefia de polícia do Distrito Federal estava então entregue ao general Manuel Carneiro da Fontoura, que sabidamente lançava mão de métodos repressivos radicais.
O procurador Criminal da República, dr. Sobral Pinto – que depois se notabilizaria pela advocacia em favor dos direitos humanos – o denunciou e ele foi preso na Casa de Detenção, na ilha das Flores. A geladeira de bernardes, referência ao então presidente Artur Bernardes, durou 11 meses, até que o Supremo Tribunal Federal concedeu o habeas corpus impetrado pelo advogado Targino Ribeiro, que posteriormente chegou a presidir a OAB. 
Libertado, passou a integrar as fileiras do Partido Democrático, fazendo conferências, algumas no interior de São Paulo (Botucatu, Lençóis, Duartina, Agudos etc), deixando fortes impressões por onde passava.
Em 28 de outubro de 1928, um mês e pouco antes de morrer, Labouriau foi sufragado nas urnas, eleito intendente municipal pelo 2º distrito.
Três dias antes de embarcar no último avião da existência, ele passara também a dirigir o jornal “O Imparcial”, velho matutino que fora adquirido pelo Partido Democrático.
Na véspera do voo fatídico, conta-se que Ferdinando passara a noite estudando papéis relativos à municipalidade. Quando foi chamado a voar, ainda muito cedo, estaria dormindo com a cabeça recostada sobre a mesa de trabalho.
Sua existência, embora curta, foi altamente profícua. Públicos vários livros e trabalhos, tendo estudado a fundo questão de siderurgia no Brasil. Ele acreditava ainda que só por meio da educação haveria progresso, por isso liderou, na Academia Brasileira de Ciências (ABC) e na Associação Brasileira de Educação (ABE), as campanhas da década de 1920 pela reforma do ensino no Brasil pela instituição de um novo padrão de ensino superior, fundado no modelo universitário e voltado para a pesquisa.
A propósito, em artigo intitulado “Educação e Evolução”, publicado em “O Jornal”, ele chegou a consignar que “somente a instrução ao alcance efetivo de todos poderá fazer com que o nosso progredimento seja real”.
Ah, quanta inteligência aquela manhã de dezembro de 1928 nos privou.
Privou também três filhos pequenos do convívio com o pai: Ivan, Luiz Fernando e Vera.
Ivan é o premiado engenheiro naval Ivan Gouvêa Labouriau.
E o filho do meio, Luiz Fernando Gouvêa Labouriau, foi um dos maiores nomes da botânica nacional.
Confira a história dos aparatos eletrônicos no mundo e no Brasil:
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* O original artigo, que traz a surpreendente previsão, foi republicado em edição de 31 de janeiro de 1931 pela revista O Cruzeiro (ed. 52, p. 17). Em 22 de novembro de 1958, a revista mencionou novamente o artigo, destacando a previsão feita por Labouriau acerca do “telefone-televisor automático” (ed. 6, p. 42). E, por fim, em 1981, o hebdomadário relembra o texto (ed. 32, p. 85).  

fonte: Migalhas