Sílvio de Salvo Venosa e Luiza Wander Ruas
Espera-se um novo período de maior liberdade nas negociações, manutenção dos contratos e estabilidade das relações para que os empresários e contratantes em geral se sintam mais confortáveis para realizar negócios no Brasil.
A tão discutida MP 881 foi transformada na lei 13.874 no final de setembro deste ano, em meio a muita celeuma e expectativa de juristas e empresários pela instituição da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e vigência das previsões de desburocratização ali contidas, especialmente relevantes para os pequenos empreendedores.
O que se depreende da leitura integral desses novos artigos é que o Executivo, agora com a chancela do Legislativo, almeja superar a persistente ineficiência estatal e estagnação para dar abertura para um novo momento, de maior liberdade, com investimentos, geração de renda, livre mercado e, enfim, desenvolvimento.
Para esse novo momento de dinamismo econômico, inevitavelmente ajustes no ordenamento também se fazem necessários, já que o Direito, por vezes, pode impedir ou retardar que negócios se realizem da forma almejada. Esses ajustes demonstram, como não se duvida, como o Direito, a Economia e o desenvolvimento estão profundamente conectados.
Passando à análise jurídica, dentre os artigos do Código Civil alterados, analisaremos apenas os que são relevantes para os negócios jurídicos firmados entre particulares, especialmente os referentes à sua interpretação.
Pontua-se que da análise comparativa entre a redação atual desses artigos e a redação presente na versão inicial da MP, nota-se que diversos ajustes foram feitos e alguns pontos contraditórios e até mal redigidos não prosseguiram.
Não se abordará neste texto as demais regras de interpretação do Direito Civil e da área Consumerista, já que tais regras estão profundamente abordadas em nossa doutrina. Busca-se aqui discorrer tão somente sobre as positivações da lei da liberdade econômica.
Considerando que interpretar é aplicar o Direito, o ponto central dessa recente norma é a interpretação dos contratos, ou seja, a exegese do que foi redigido ou declarado.
O contrato, bem como qualquer instrumento, deve ser claro para que uma generalidade de público, um segmento social, o famoso auditório tratado por Chaim Perelman, consiga compreender e absorver a integralidade de seus termos. Nesse sentido, como dito pelo ilustre Caio Mario da Silva Pereira: interpretar é uma reconstrução da vontade das partes no momento da formação do contrato1.
Contudo, como nem sempre as palavras conseguem atingir certeiramente o que as partes contratantes almejavam na época na elaboração do documento, a interpretação e integração dos contratos passam a ser enfoque. Na verdade, toda lei e todo contrato exigem interpretação, mais ou menos ampla. É falacioso o brocardo in claris cessat interpretatio.
Com os novos itens trazidos pela lei 13.874 adiciona-se ao antigo artigo 113 do Código Civil parágrafos e incisos, com novas regras interpretativas para um negócio jurídico. Aliás, diga-se, todas essas regras introduzidas são de sobejo conhecidas na doutrina e utilizadas nos tribunais. Ademais, não é conveniente que o texto legal esteja pleno de regras, a atulhar o raciocínio do julgador, pois esse trabalho é doutrinário e jurisprudencial. No entanto, o novel legislador parece estar longe dos ensinamentos de Pothier, Demoge e tantos outros autores, nacionais e estrangeiros, do passado e do presente.
Passemos, então à análise de cada desses novos dispositivos.
Lembremos o texto do caput do art. 113 do Código Civil:
“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração”.
Recorde-se ainda o texto do art. 112, que estatui que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que o sentido literal da linguagem”.
Assim, tendo esses dois textos em mente, analisemos o que a novel lei introduziu.
Comportamento
“Artigo 113, §1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I. for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio.”
Neste inciso o legislador enfoca para a prática contratual. A interpretação deve ser direcionada ao rumo do que os contratantes efetivamente encetaram no cumprimento daquilo que foi acordado no negócio jurídico. O comportamento das partes depois da conclusão do contrato denota um rumo, uma interpretação do negócio dada pelos próprios contratantes, na realidade os intérpretes primeiros deste negócio. No caso de conflito desses comportamentos, poderá surgir a necessidade do intérprete final, um julgador, juiz ou árbitro.
Imagine-se um contrato de locação de imóvel, quando o locatário efetua o pagamento mensal do aluguel sempre a destempo, e, não lhe sendo aplicado qualquer penalidade e sem que tal fato seja contestado pelo locador ou observado na quitação. Então, em um momento posterior não há que o locador intente cobrar qualquer valor de multa e juros por esses dias de atraso no pagamento, tendo em vista que na execução do contrato de locação nunca cobrou/reclamou por tal inadimplemento. Trata-se de análise típica de comportamento contratual, sufragada pelos tribunais.
Usos, costumes e práticas de mercado do tipo de negócio
“Artigo 113, §1º, II. corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio.”
Além dos usos do local da celebração, que já estavam previstos no caput do artigo 113 referente aos negócios jurídicos, a novidade passa a ser a menção dos usos, costumes e práticas do mercado para o respectivo tipo de negócio na interpre-tação. Esse aspecto já era sobejamente conhecido da doutrina e da jurisprudência. Posição primária do legislador, desacostumado certamente com os procedimentos processuais e com o direito doutrinário. Esses aspectos já fazem parte da cultura comercial local e internacional.
Desses conceitos, de forma muito resumida, se tem: “usos” é algo que é feito pelo próprio mercado de forma rotineira; “costume” é a prática reiterada e que as partes entendem como necessária para o negócio; e “práticas de mercado” são os atos comuns no desenrolar de cada negócio.
Independentemente de tentar separar tais conceitos, os usos, costumes e práticas do mercado são termos complementares para referir à prática civil e empresarial de um negócio, o que é subentendido mesmo na ausência desse texto legal superfetado.
Invocando nesta Pothier, importante doutrinador francês que no século XVIII listou mais de uma dezena de regras para interpretação das convenções, já considerava essa cultura comercial que está sendo positivada em nossa lei no presente, vejamos: quando a cláusula não for clara, deve seguir o mais aplicável à natureza do contrato2. Pois é, a lei nova traz aqui uma falsa modernidade, porque tradicional há vários séculos.
Vejamos um exemplo: em um contrato de fornecimento de uma quantidade fixa de mercadorias mensalmente, caso as partes descrevam apenas um valor no instrumento, sem especificar que será pago aquele mesmo valor mensalmente, pela prática deste tipo de negócio, entende-se que aquele montante será pago todos os meses. Ademais, se fosse aquele valor a ser pago pelo contratante uma única vez durante todo o período de vigência contratual seria irrisório para a contratação, não fazendo o menor sentido essa interpretação restritiva.
Notem, ainda, que em cada região o mesmo negócio pode ter práticas mercantis diferentes, e isso também deve ser observado. Devido a essa prática, o “mercado segue uma ordem e tem certa previsibilidade”3 e será o que regerá no caso de uma lacuna/contradição de uma previsão contratual.
Impõe-se, ainda mais, que os advogados contratualistas compreendam o negócio e até o posicionamento físico, ético e social de seus clientes para prever cláusulas específicas que atendam o seu negócio.
Boa-fé
“Artigo 113, §1º, III. corresponder à boa-fé”
A boa-fé é bem difundida no Código Civil de 2002, que agora também vem reiterada em certos aspectos na lei 13.874 (como também no artigo 3º, V). A ideia é realçar que a interpretação corresponda à boa-fé, desconsiderando ou punindo toda ação que for contrária a esse princípio.
Como regra, a boa-fé prevista na legislação civilista é a objetiva, em contra-partida à boa-fé subjetiva, que é a vontade em si, o que o agente, em seu íntimo, entende ou vislumbra. A boa-fé objetiva nada tem a ver com essa subjetividade, e sim com a conduta social externamente percebida, eticamente aceita antes, durante e depois do contrato. Trata-se do comportamento aceito como padrão, standard, em cada caso concreto.
Por isso, a boa-fé objetiva dá mais segurança ao sistema, porque não há que se adentrar em pensamentos íntimos que são impossíveis de se acompanhar, quando não imprevisíveis.
Interpretação mais benéfica
“Artigo 113, §1º, IV. for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável.”
Essa dicção consagra o brocardo ambiguitas contra stipulatorem est, ou seja, fato já bem conhecido do Direito. Chamamos a atenção para parte final deste inciso e os dizeres “se identificável”. Tal destaque é um ponto inovador, pois para algumas negociações pode ser difícil ou até impossível estabelecer quem inseriu o vocábulo ou estipulou a redação final que gerou a contradição.
Nas discussões das minutas contratuais, em especial de contratos complexos, as partes contratantes realizam diversos ajustes, inclusões e exclusões nas minutas, há marchas e contramarchas e a identificação da autoria de um ponto específico é atividade complexa.
De qualquer forma, independentemente do negócio jurídico, identificando-se a parte que redigiu a previsão que não é clara, não pode esta ser beneficiada de sua torpeza.
Razoabilidade das negociações
“Artigo 113, §1º, IV. corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.”
Essa disposição é prolixa. Desde os ensinamentos de Pothier que se tem essa noção de interpretação, a de que é preciso voltar para intenção comum das partes e não somente às palavras em si4. Uma cláusula nunca deve ser interpretada isoladamente, mas sim no contexto do instrumento negocial, o conjunto do texto e do contexto é que vai permitir ao exegeta a real compreensão do que foi pretendido pelas partes. O mesmo vale em uma operação com um conjunto de contratos, ou contratos interligados, em que todos os instrumentos devem ser analisados conjuntamente.
Sobre a racionalidade econômica, como leciona Paula Forgioni, trata-se de um termo da economia “relacionada não apenas ao objetivo de lucro, mas à eficiência, conforme os escopos pessoais a que cada um se propõe”5, acarretando maior proveito e lucro. Essa racionalidade econômica para o “standard do homem “ativo e probo” nada mais é senão a assunção de uma racionalidade própria dos empresários [socialmente típica] depurada pelo direito [regras cogentes] como um padrão interpretativo.”6
Diante desse direcionamento da interpretação, verificamos que os considerandos do contrato devem ser bem redigidos, na forma mais clara possível e aprofundada, para que o contexto da celebração seja açambarcado integralmente, uma vez que os destinatários do contrato não serão certamente os mesmos agentes que o redigiram. Esse ponto é de se recomendar em qualquer contratação e não apenas para os contratos mais complexos.
Regras de interpretação
“Artigo 113, §2º. As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.”
Por essa norma, as partes contratantes podem pactuar suas próprias regras e limites de interpretação, estabelecendo parâmetros, além dos legais. Interpretar é aplicar o Direito buscando o significado do texto negocial e dar aplicabilidade ao previsto no instrumento.
A integração não se confunde com a interpretação. Integração é a complementação de uma previsão, um raciocínio mais amplo do intérprete; é o preenchimento de lacunas com elementos externos ao contrato.
As partes contratantes podem prever qual será a solução que seguirão diante de um fato novo quando houver lacunas nas cláusulas do contrato, ou estabelecer ao menos um procedimento diante desses fatos. Para tal devem sempre recorrer a juristas técnicos, versados na arte de contratar.
Note que essas previsões não são frequentes no cenário e nas negociações brasileiras.
Função social
“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”
Adentrando ao capítulo das disposições gerais dos contratos em geral, destacamos, agora, a nova redação do artigo 421 caput, em que alguns vocábulos foram alterados, mas que mantém a previsão de que a liberdade contratual está limitada pela função social do contrato.
Essa função social deve estar em pauta sempre que as previsões contratuais atinjam interesses externos, interesses sociais além dos contratantes, como lecionado por Calixto Salomão. Esclareça-se que não se fala em aplicação da função social às partes contratantes em si, caso isso ocorresse levaria a tentativas assistemáticas e difusas de reequilíbrio contratual, que já estão atribuídas pelo princípio da boa-fé e pela cláusula rebus sic stantibus.7
O parágrafo único, ora introduzido, traz, como reiteradamente na lei 13.874, o princípio da intervenção mínima do Estado, devendo a revisão contratual estatal ou arbitral ser uma forma excepcional.
Trata-se de norma programática que para ser efetivada depende do próprio Estado que ora e vez interfere nas contratações privadas. De qualquer forma, é um dispositivo esperançoso e que se coaduna com os demais da liberdade econômica, inclusive a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre as atividades econômicas.
Entendemos que por meio desse dispositivo se permitirá a redução das discussões judiciais, especialmente sobre interpretação contratual, na expectativa de que seja preservado o que foi acordado pelas partes nos contratos. Oxalá estejamos errados, mas todas as tentativas estatais nesse sentido, na História da República, se frustraram.
Simetria das partes e orientadores da interpretação
“Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simé-tricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”
Nos contratos interempresariais as partes passam a ser presumidas com simetria e paritárias, ou seja, as partes contratantes têm a mesma capacidade de analisar o texto contratual, compreender e aceitar os riscos, sendo a negociação equitativa (tal fato também previsto no artigo 3º, VIII da lei 13.874). Todos nós que atuamos na elaboração de contratos sabemos que essa paridade é apenas um rumo e raramente é real.
Tal presunção é, como se percebe, relativa, podendo ser afastada mediante elementos concretos e probatórios. Ademais, tal paridade deve ser verificada sob dois vieses: econômico e social, pois, por mais que uma das partes esteja suportada do ponto de vista econômico, pode não ter o subsídio social, técnico ou intelectual para que se configure uma efetiva paridade e simetria.
Além disso, na relação contratual não é possível afirmar categoricamente sobre a paridade. É comum, até em contratações de grande vulto, que uma das partes seja mais “frágil” do ponto de vista negocial, com menos poder de barganha, pois necessita da respectiva contratação, aceitando termos que lhe são negativos.
Como reiteradamente expusemos, neste artigo também é sugerido às partes contratantes que estabeleçam, de forma clara e de acordo com a legislação, como será a interpretação das cláusulas contratuais. Podem também estabelecer parâmetros para revisão do contratado e até sobre as modalidades de resolução. Note que essa reiteração expõe a fragilidade dos muitos contratos na realidade brasileira, em que esses preceitos mínimos, como as formas de resolução, estão ausentes de previsão nos instrumentos, forçando contratantes a recorrerem ao Judiciário ou à arbitragem para solucionar qualquer mínimo conflito.
Ocorre, ademais, a positivação sobre a alocação de riscos, previsão já tão comum e inserida frequentemente nos contratos. Tal posicionamento é o que permite a efetivação de diversos negócios, tendo em vista que a alocação de seus riscos, de forma equitativa e ponderada, permite às partes a inserção de certos valores e condições empresariais específicas.
No último inciso do artigo 421-A, novamente o texto ressalta a excepcionalidade da intervenção estatal, incluindo-se uma limitação dessa intervenção, limitada apenas à cláusula que necessita da interpretação de um terceiro para melhor solucionar o conflito instaurado entre os contratantes. Norma de programa, como dissemos, de cunho mais político do que jurídico.
Pode-se afirmar que as doutrinas já abordavam praticamente todas as recomendações que agora estão positivadas no Código Civil e na lei de liberdade econômica, para açular ainda mais os espíritos dos já exauridos magistrados. De qualquer forma, houve essa preocupação do legislador, pois a interpretação dos instrumentos negociais sempre é complexa para as relações empresariais.
A realidade é que estamos cercados de expressões vagas em leis e documentos particulares que dão ao juiz ou ao árbitro abertura para interpretação por demais elásticas, desprovidas de um exame mais acurado da história e dos princípios legais.
Destarte, o intuito das novas normas trazidas pela lei 13.874 é de que o sentido da interpretação é direcionado às partes, e, posteriormente, como sempre, ao juiz ou árbitro, intérpretes derradeiros e conclusivos. Cabe, pois, ao intérprete exa-minar os elementos econômicos, sociais e gramaticais de cada manifestação.
Com o advento da positivação dos preceitos examinados, o que se recomenda é que os contratos passem a conter considerandos mais explicativos, cláusulas sobre a interpretação, integração e alocação de riscos, enquanto para os documentos já vigentes nasce uma grande oportunidade para ajustes quanto a esta nova legislação.
Por fim, conclui-se que a lei 13.874 é mais uma norma plena de boas intenções. Na realidade, este país está farto de boas intenções e péssimas ações. Espera-se um novo período de maior liberdade nas negociações, manutenção dos contratos e estabilidade das relações para que os empresários e contratantes em geral se sintam mais confortáveis para realizar negócios no Brasil. Contudo, a efetiva aplicação dos direitos de liberdade econômica só terá uma resposta com o decorrer de certo tempo. Com a palavra dos interessados e certamente dos julgadores desta terra. Aguardemos a resposta da sociedade e dos tribunais.
Fontes: Migalhas