segunda-feira, 12 de abril de 2021

A liberação de cultos por Nunes Marques, uma das piores decisões da história do STF

 


Quando a pandemia tiver passado, quando nossos mortos tiverem sido finalmente contados e honrados, não podemos esquecer – dos sacrifícios da população, dos esforços heroicos de profissionais de saúde e gestores públicos, e de responsabilizar a quem se deve.

Na véspera da Páscoa de 2021, o Brasil alcançava a marca de 331.350 mortes em decorrência da pandemia.  Com apenas 3% da população mundial, o país responde por 33% das mortes diárias no mundo por Covid-19 – uma doença que, como todos sabemos, se transmite pela proximidade física. Nesse cenário, o ministro Nunes Marques decidiu, individualmente, afastar restrições municipais e estaduais e liberar cultos religiosos presenciais em todo o território nacional. O Vaticano, que havia realizado as celebrações de Páscoa remotamente em 2020, realizou a missa desta Páscoa com duzentas em vez de milhares de pessoas. Mas, para Marques, era urgente permitir que os fiéis participassem de cerimonias religiosas presenciais nesse domingo; exigir que celebrassem a Páscoa em cultos remotos seria violar gravemente seus direitos fundamentais.

Em 2020, o Supremo havia permitido, de maneira genérica, a edição de variadas restrições por autoridades municipais e estaduais, desde que motivadas pela proteção à saúde de seus cidadãos, assessoradas por especialistas, e informadas pelas peculiaridades locais no enfrentamento da pandemia. Segundo Marques, porém, a variação de medidas entre localidades – algumas permitindo cultos presenciais, outras não – seria em si um problema a exigir a intervenção do Supremo. Ao impedir genericamente a proibição local de cultos presenciais em todo o país, Marques se substituiu ao mesmo tempo a seus colegas de hoje e ao que o Supremo decidiu no passado. Deve, então, também se substituir a eles na responsabilidade pelas consequências de seu ato.

Ao Supremo o que é do Supremo, e a Marques o que é de Marques: devemos a ele uma das piores decisões da história do tribunal.

I.

A concessão de liminares monocráticas exige  plausibilidade do pedido (fumus boni iuris) e perigo na demora (periculum in mora).

Com relação ao periculum, Nunes Marques salientou a proximidade da Páscoa. Porém, essa urgência é artificial. A ação chegou ao Supremo em junho de 2020; com a aposentadoria de Celso de Mello, Marques se tornou o seu relator em novembro de 2020. Se o tema era urgente, Marques poderia ter solicitado pauta no plenário, ou – alternativa mais drástica, criada no contexto da pandemia da covid-19 – simplesmente iniciado o julgamento no Plenário Virtual, dando a seus colegas um prazo fixo para se manifestarem sobre a cautelar. Não fez nenhuma das duas coisas.

A data da Páscoa já era conhecida. As novas medidas restritivas já vêm de semanas. Não havia surpresa ou novidade. O absoluto silêncio de Marques manufaturou urgência totalmente desnecessária. Romper esse silêncio de meses no sábado garantiu que a decisão produzisse efeitos antes de o colegiado apreciá-la. Um caso claro e extremo de decisão individual contra o poder do plenário – como usurpação, e não delegação, da autoridade do colegiado.

Com relação à plausibilidade do pedido, essa mesma dinâmica importa. Se a concessão da liminar provavelmente não seria confirmada pelo plenário, como considerar presente o fumus? Se a plausibilidade for apenas “o que o ministro considera certo”, ela não servirá como critério específico da concessão de liminar. É preciso se perguntar se o que se pede agora tem chance significativa de ser mantido ao final do processo. Marques, porém, por livre escolha, jamais levou o tema ao colegiado.

É notável que Marques passe boa parte da decisão discutindo decisões anteriores do Supremo que, a princípio, iriam contra a concessão da liminar. É o caso da ADPF 703, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Em fevereiro de 2021, o tribunal confirmou, por unanimidade, a decisão monocrática do relator considerando que a Associação de Juristas Evangélicos não tinha legitimidade ativa para propor ADPF. Segundo a decisão de Moraes, a Associação não podia ser considerada “entidade de classe de âmbito nacional”, nos termos da Constituição e da jurisprudência do Supremo. Não houve dúvida, naquele julgamento, com relação a esse ponto. Nem por parte de Marques.

Para nublar esse evidente obstáculo no colegiado, Marques procura apontar para outras decisões, reconhecendo a legitimidade de outras “associações de juristas”. Sobre esta associação, porém, não há até o momento qualquer dúvida ou divergência. Ao trazer essas decisões e tentar mostrar que não se aplicariam aqui, o próprio Marques reconhece implicitamente as dificuldades que sua posição terá à frente, no colegiado. Tudo isso sem sequer entrarmos no mérito do pedido. Se a chance de confirmação é baixa, como falar em plausibilidade jurídica do pedido?

II.

Quanto ao mérito da liminar, Marques, como vimos, registra que a “disciplina desuniforme sobre a liberdade de culto” justificaria a intervenção do STF. Contudo, como vimos, essa variação é, em princípio, uma implicação direta das decisões que o tribunal tomou em 2020. Marques, porém, não discute a jurisprudência do STF sobre a pandemia. Em vez dela, recorre à decisão da Suprema Corte dos EUA, de fevereiro de 2021, que anulou restrições a cultos religiosos presenciais no estado da Califórnia.

Marques procura justificar a relevância da decisão dos EUA  com o fato de que, desde 1891, nosso direito constitucional foi influenciado pelas ideias e práticas do sistema estadunidense. A influência em 1891 é clara; sua relevância para uma decisão em 2021, não. E nem mesmo os republicanos de 1889 considerariam que uma decisão da Suprema Corte dos EUA dispensa a discussão da jurisprudência nacional existente.

O Decreto 848/1890 do governo revolucionário afirmou que “Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na Republica dos Estados Unidos da America do Norte (…) serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo federal” (art. 386). O dispositivo ilustra colonialismo intelectual disseminado à época, cujos efeitos perduram até hoje no direito constitucional e no próprio Supremo. Entretanto, limitava-se a tratar decisões da Suprema Corte dos EUA como fontes subsidiárias.

Marques afirma que “a solução adotada pela Suprema Corte(592 U.S. 2021) no caso acima mencionado compatibiliza a necessidade de distanciamento social, decorrente da epidemia da Covid19, com a liberdade religiosa.” É difícil entender, porém, como o ministro pretende sustentar essa conclusão sem discutir a substância da decisão da Suprema Corte dos EUA. Como observa o Município de Belo Horizonte em petição de Suspensão de Liminar, a questão perante a Suprema Corte envolvia também saber se era possível tratar serviços religiosos com restrições mais gravosas do que as adotadas para outras atividades. Esse elemento está ausente da decisão de Marques, que procura estabelecer um direito geral de celebrar a Páscoa presencialmente, independentemente do conjunto total de medidas restritivas que cada localidade tenha adotado.

Marques não menciona que a decisão nos EUA dividiu profundamente a Suprema Corte. Tampouco que, em decisão anterior, de junho de 2020 – antes da substituição da ministra Ruth Bader Ginsburg por Amy Coney Barret –, uma outra maioria havia decidido a mesma questão em sentido oposto. Ou seja, a questão não é pacífica sequer no tribunal que Nunes Marques cita como autoridade para resolver o caso no direito constitucional (e no contexto epidemiológico) brasileiro.

Em seu voto vencido, a ministra Kagan criticou a maioria por tratar questões complexas de saúde pública como se fossem apenas questões legais e constitucionais. Observou que “em meio à pior crise de saúde pública do século, essa incursão em epidemiologia de gabinete não pode terminar bem”. Nos EUA, a maioria dos ministros aceitou assumir essa responsabilidade, contra Kagan e a minoria; no Brasil, porém, um ministro sozinho arrastou a autoridade do Supremo em uma direção que, sem dúvida, não pode terminar bem.

O tema é delicado, lá e cá, mas os contextos são bem distintos. Lá, a nova ministra foi um voto decisivo para mudar um placar apertado, em um julgamento colegiado em um tribunal dividido. No Brasil, o novo ministro decidiu sozinho, contra um Supremo que, até aqui, tem estado unido com relação às medidas restritivas na covid-19. Marques já teria agido melhor se, em vez de apenas seguir o resultado da decisão da Suprema Corte dos EUA, adotasse também a seriedade do seu procedimento.

Em um ponto na decisão, porém, a decisão de Nunes Marques é representativa do vocabulário político nacional do momento. O ministro menciona os mecanismos do Estado de Defesa e de Sítio, que têm aparecido no debate público recente na voz do presidente Jair Bolsonaro, o procurador-geral Augusto Aras e outros atores políticos.  Segundo Marques, não haveria previsão constitucional para restrição de cultos religiosos presenciais sequer nos estados de defesa e de sítio. Nessa leitura da Constituição, o Brasil não poderia impedir a realização de cultos religiosos presenciais nem mesmo se estivesse em guerra externa. Como o artigo 136 não fala especificamente da suspensão do direito de reunir para cultuar, não estaria enquadrado na suspensão do direito de reunião de maneira geral. Difícil colocar, em uma democracia, o direito de reunião religiosa acima do direito de reunião política. O absurdo da interpretação é evidente, mas Marques não está sozinho na referência a Estado de Sítio e de Defesa.

III.

Embora haja mais problemas na decisão, os pontos acima deveriam ser suficientes para deixar clara a responsabilidade moral de Marques por atender a um pedido nocivo nas consequências e frágil no direito. O Supremo está se preparando para decidir o caso já nesta quarta-feira. Essa velocidade do tribunal manda mensagem importante para comportamentos individuais futuros. Mas, com o estrago já está feito, é preciso duas outras mensagens adicionais.

Primeiro, no mérito, que o Supremo dê uma decisão institucionalmente responsável, cientificamente informada e juridicamente cuidadosa, em contraste com a inconsequente monocrática de Marques. Desde 2020, o tribunal vem exigindo dos poderes públicos que as decisões sobre a pandemia sejam devidamente fundamentadas em estudos técnicos. Deixar claro que uma monocrática tão frágil e ligeira não representa a postura do Supremo nesse tema é dar o exemplo dentro de casa.

A segunda mensagem exige do tribunal algo que raramente aceita fazer: criticar não a decisão do ministro, mas o seu comportamento. Sinalizar que a concessão dessa liminar, nessas condições, está fora dos padrões até para um tribunal que garante excessiva margem de atuação individual. Há muitas propostas de reforma do regimento que tramitam para limitar esse tipo de arroubo individual; algumas delas suspensas por pedido de vista do presidente Fux. Essas necessárias reformas, sim, são de responsabilidade de todos os ministros. Mas, enquanto não vêm, o Supremo deve aproveitar oportunidades de dizer que, apesar de ser profundamente fragmentado no exercício de poder, ainda é um tribunal.

 


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute a crise militar e seu impacto no Supremo Tribunal Federal. Ouça:

 

 

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